Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 25 de março de 2016

"A noite das rotativas em marcha" de Miguel Koleff - Publicado na edição #46 da Blimunda (Masço 2016)

Artigo publicado na edição #46 da revista digital "Blimunda"

A presente edição, tal como todas as anteriores, podem ser descarregadas, aqui

"A noite das rotativas em marcha" de Miguel Koleff

"A nossa vida é uma resistência contínua à debilidade,à renúncia, 
ao conformismo, e até, por vezes, às pequenas e grandes traições."
Manuel Torres

Há títulos que desde o momento em que nascem traduzem a inquietude com que foram forjados. O caso da primeira obra teatral de José Saramago é um deles. A Noite  a que se refere corresponde à noite da Revolução dos Cravos e prolonga-se até ao amanhecer do 25 de abril de 1974, que confirma a ação militar. Os capitães tomaram o controlo da cidade e esse controlo vai-se estendendo a todo o país. Após quarenta anos de ditadura, respiram-se em Portugal ares de renovação e de democracia.

Saramago antecipa neste texto um dos temas que será o leit motiv das sua produções ficcionais a partir dos anos 80: a impugnação do poder. E realiza-o do modo denodado a que nos acostumou. A cena decorre na redação de um jornal afeto ao regime e sujeito à censura vigente. É tarde e há que fechar o editorial quando começa a propagar-se o rumor de uma suposta rebelião nas ruas. Estas notícias não oficiais, que ao longo da trama se vão ratificando, põem em evidência uma transformação social e política que modificará as estruturas e que exigirá uma tomada de posição tanto do jornal como dos jornalistas e técnicos envolvidos.

O desenvolvimento sequencial parte desta premissa e determina as circunstâncias em função dos comportamentos assumidos. Esboça-se rapidamente um quadro dos cooptados ao salazarismo e de uma minoria discordante que reage com satisfação às possibilidades que se avizinham. Há que dizer, no entanto, que o mais patético de tudo não radica nesta espécie de submissão ostensiva ao poder político por parte da direção mas às formas de assegurar a sua perdurabilidade mesmo se o resultado for discrepante das convicções defendidas. Nenhuma diferença quanto ao axioma de Groucho Marx e das ideologias que se negoceiam em função das necessidades [«Esta é a minha ideologia; se não te agrada, tenho outra».]

Como durante várias horas se desconhece o carácter do golpe militar – uma ação de-fensiva da direita? Um contragolpe da esquerda? –, o conjunto de ações que desarti-cula a rotina torna-se tão nebuloso como os procedimentos que se querem legitimar e sustentar a qualquer preço. Não devemos deixar de pensar – neste sentido – que esse jornal em particular representa metonimicamente os meios de comunicação dissemina-dos pelo país.

(Fotografia da peça de teatro, baseada na obra "A Noite" - Cenário da redacção"

É óbvio que nesta obra teatral o autor português reelabora parte da sua biografia, já que durante muitos anos praticou o jornalismo tendo sido, inclusivamente, diretor-adjunto do Diário de Notícias. Não seria absurdo supor que os episódios relatados sejam de algum modo fiéis à sua experiência, tal como se explicita no editorial pensado para o dia seguinte, no qual refuta – de forma verídica – um argumento pessoal utilizado durante o seu trabalho jornalístico (1). Contudo, a intenção de Saramago excede o revisionismo histórico porque questiona o exercício responsável da notícia.

eixo desta discussão fica patente quando Abílio Valadares, o chefe de redação, reflete sobre o papel que caracteriza a atividade profissional e pretende alijar qualquer intencionalidade em seu nome. «Defendo a objetividade, a neutralidade da imprensa, não estou comprometido com o poder» (Saramago, 1979, p. 91). Finge dar lições sobre a conduta correta em vez de agir de acordo com as circunstâncias imprevisíveis: se aderir ou negar-se aos acontecimentos pensando no público cativo e na repercussão futura que o jornal terá em relação à cidadania quando se consolidarem os movimentos revolucionários.

A posição dos tipógrafos liderados por Manuel Torres – o grupo do Torres, como é conhecido – é mais enfática ainda ao colocar como princípio orientador não a consideração pública num contexto próximo mas a ação cívica que corresponde ao momento atual. Um personagem feminino – profundamente saramaguiano – que faz parte desta equipa, define-o com precisão: «A nossa primeira e única obrigação é ir averiguar o que se passa e dizer. Não temos outro dever.» (P. 107) Trata-se de Cláudia, a estagiária, que de personagem de segundo plano passa a figura incontestável do drama a partir da sua intervenção.

(1). Numa nota de rodapé, Saramago assinala que o artigo de fundo elaborado pela personagem ficcionada é transcrito do jornal fascista Época e que surgiu em 26 de abril de 1973. O autor acha-se no direito de o citar já que o signatário responde a um artigo seu publicado no Diário de Lisboa, onde exercia ao tempo as funções de editor. (M. K.)

Para lá do posicionamento político que os personagens assumem em relação aos acontecimen-tos históricos de que são protagonistas, o que torna vigente o texto de Saramago é o olhar pelo interior das corporações e seu funcionamento, o modo como se manipula a informação e a sua correlação política: a responsabilidade que cabe ao jornalismo de não se transformar em utensílio de conspiração.

No final da obra introduz a oportunidade revolucionária, ao referir Walter Benjamin (Benjamin, Teses sobre a História e Outros Fragmentos, 2009, p. 29) [Tese XVII]. O falseamento de perspetivas do governo ditatorial dá lugar à impugnação frontal das cumplicidades arrivistas. Cabe ao jornal reciclar-se internamente e assumir a sua participação ativa no concertamento dos eventos democráticos. Isto pressupõe mudanças radicais que dialetizam o olhar e o tornam apto ao desafio de uma sã dissidência. A revolução está nas ruas mas troveja nas rotativas que se põem ao seu serviço. Não se trata apenas de registá-la com imparcialidade mas de encarná-la como movimento cívico que exige compromisso."

Miguel Koleff na apresentação de um dos seus variados trabalhos

Informação via "Revista de Estudos Saramaguianos", aqui

"MIGUEL ALBERTO KOLEFF"
"É Doutor em Letras Modernas. Especialista em Literaturas Lusófonas. Desenvolve atividades académicas como professor titular em Literatura na Faculdade de Línguas da Universidade Nacional de Córdoba (Argentina). Especialista na obra de José Saramago, exerceu a Direção Honorária da Cátedra Livre José Saramago na Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade Católica de Córdoba desde sua criação em 2008 até 2012. Decano da mesma instituição entre 2006 e 2011. Foi coordenador da área de Letras do Centro de Investigações da Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade Nacional de Córdoba entre 2005 e 2006. É autor de La Caverna de José Saramago e um dos organizadores da coleção Apuntes Saramaguianos, coleção que já vai no sétimo volume editado e do Diccionario de personajes saramaguianos. Atualmente desempenha a Codiretoria do Mestrado em Linguagens e Interculturalidade da Faculdade de Línguas (Universidade Nacional de Córdoba) e coordena a Cátedra Livre José Saramago Extra-Muros em coparticipação com o Centro Cultural Espanha-Córdoba a partir de acordo com a Fundação José Saramago."