Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Na revista "Up Magazine TAP" artigo de Luís Gouveia Monteiro "Lisboa-Cascais-Mafra – Viagem ao fim do império" com o escritor Helder Macedo (01/06/2016)

Na revista "Up Magazine TAP" foi publicado um artigo de Luís Gouveia Monteiro intitulado "Lisboa-Cascais-Mafra – Viagem ao fim do império" com o escritor Helder Macedo, com passagens por lugares que fazem parte da obra de José Saramago.
Fotografias de Marisa Cardoso

O artigo pode ser recuperado e consultado, aqui

"Lisboa-Cascais-Mafra – Viagem ao fim do império"

"Vamos com o escritor Helder Macedo pelo verso e prosa da cidade do Tejo até ao território de uma das maiores obras de Saramago, o Nobel da literatura português. Um roteiro seguindo a terra que acaba e o mar que começa – ou o contrário –, por ruas poéticas, falésias atlânticas e um palácio barroco."

Largo de Camões - Lisboa (Fotografia de Marisa Cardoso)

Em cada esquina, um poeta. Talvez diga alguma coisa sobre Lisboa, talvez não, mas o coração da capital está apinhado de artistas da língua. Luís de Camões (1524-1580), imponente, no cimo da estátua da praça com o seu nome. António Ribeiro Chiado (1520-1591), mesmo em frente, e Fernando Pessoa (1888-1935), abraçado aos turistas, na esplanada do café A Brasileira, do outro lado da rua. A uns passos, no Largo do Barão de Quintela, ainda passaremos por Eça de Queirós (1845-1900), também em bronze, na versão do escultor Teixeira Lopes, com a verdade toda nua nos braços. O fim de semana começa no coração da cidade, na sede da Abysmo, editora que publicou, em 2014, Camões – A Viagem Iniciática, de Helder Macedo.

Espera-nos João Paulo Cotrim, o editor. O ponto de encontro é a Mimosa do Camões, restaurante na Rua da Horta Seca, em frente ao Ministério da Economia. Funciona como cantina e tertúlia da editora. Helder – que viveu a juventude em ditadura nas mesas míticas do Café Gelo, no Rossio – declarou aqui há um ano: “Reencontrei a minha gente”. O nosso convidado chegou de Londres no dia antes. Está hospedado no Hotel Britania, cuja recuperação elogia. Gostou especialmente dos frescos com representação das ex-colónias ultramarinas, “Açores e Madeiras incluídos”. Chega com o pequeno-almoço tomado. Pouco passa das dez da manhã quando avançamos da Mimosa para o Camões. O programa é simples, o trajeto também: ir sempre em frente e depois virar cinco vezes à direita, até fechar círculo, passando por Cascais e Mafra. Até regressar ao mesmo sítio. Em cada esquina, virar um poeta.

O primeiro poeta é Camões, lá em cima, na estátua. O poeta que o professor Macedo tem ensinado ao mundo como o primeiro moderno: homem que correu mundo e correu perigo e que mandava dizer por carta, aos amigos, que preferia as mulheres do Chiado porque as de Goa não sabiam citar Petrarca. Mas desengane-se quem ler nessa queixa um machista literato. Muito pelo contrário, o autor de Os Lusíadas foi um pioneiro cultor do desejo feminino: “Camões faz a crítica da conceção do amor em que a mulher é apenas recipiente, em que é o depositário das fantasias masculinas. É o oposto da neutralização do objeto amoroso. O Camões, muito claramente, lidou com mulheres com personalidade… com existência própria. Isso certamente que é parte do seu gozo. As figuras femininas no Camões são extremamente potentes”.

Rua do Alecrim - Lisboa (Fotografia de Marisa Cardoso)

Ainda não virámos a primeira esquina e já se começa a insinuar outro poeta, com uma multidão de heterónimos. Começa a ver-se o rio Tejo e Cacilhas, na outra margem, no enfiamento da Rua do Alecrim, e a modernidade vital e sensual de Camões aparece como quase antípoda da modernidade assexuada de Pessoa (o Virgem Negra, como lhe chamou o surrealista Cesariny) – que preferia a viagem interior? “Há um elemento no Pessoa de desistência, de resignação e de aceitação. Há uma perversidade profunda. O negativo total é o início de uma ressurreição. A não identidade, o desfazer da identidade é o início do processo da existência. É um misticismo antiquado, nesse aspeto. As conceções místicas do Pessoa são muito mais antigas do que no Camões. O Pessoa desfaz a vida, é terrível. É a total desistência tornada grandeza. O Camões é o homem que derruba todas as fronteiras com deslocamentos muito subtis. O amor e a linguagem surgem como veículos para a felicidade humana. Isto foi uma revolução.” A cada um a sua viagem, a cada qual o império que lhe convém.

À procura do mar

Primeira à direita e, à medida que se avança para a Rua do Alecrim, o espelho de água do Tejo parece fazer recuar o horizonte. Andaram por aqui os surrealistas a dizer “sei vícios” aos ouvidos de coristas e marinheiros. Lá em baixo, à esquerda de quem desce, mesmo a chegar ao Cais do Sodré, o hotel de O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), “o melhor romance de [José] Saramago” (1922-2010, inspirado num dos heterónimos de Pessoa). E depois água, tanta água. É o sítio onde a terra acaba e o mar começa. Ou será o contrário?

Descemos a pé e pegamos no carro. Segunda à direita, está na hora de mudar de poeta e Helder quer falar de “Cascais”, o poema de Almeida Garrett (1799-1854) – “Minha alma em sua razão,/ Meu sangue em seu coração!”. Se o tempo estivesse melhor talvez tirássemos um retrato numa daquelas falésias, junto a um daqueles pinheiros mirrados. “A grande poesia de amor é sobre o enamoramento, sobre as pessoas se apaixonarem, encontrarem-se e amarem-se. Celebra-se o encontro. É muito raro haver um poema sobre essa terrível verdade que é o desacontecer do amor… E com o Garrett, no ‘Cascais’, o tema é esse, o amor desacontecido. Aquilo que foi o grande encontro erótico, sentimental, emocional, é contado retrospetivamente e resulta em dois grandes amantes que agora se cruzam na rua e não se reconhecem.”

Chuvisca na Estrada Marginal. Na Curva do Mónaco vê-se que o mar traz força. A barra do Tejo foi a primeira coisa que o filho do senhor governador de Moçambique viu quando chegou pela primeira vez à metrópole. “1948… tinha 12 para 13 anos, no paquete Colonial… que era um navio de decoração art nouveau que tinha sido confiscado à Alemanha no fim da guerra 14-18. Viemos por aí acima, foi uma viagem de 33 dias… de Lourenço Marques até Lisboa. Como era a última viagem que estava a fazer, passou por todos os portos: Cabo, Lobito, Luanda, São Tomé, Funchal e a chegada a Lisboa, deslumbrante, extraordinária. Um rio que abria, em vez de fechar, o rio abre.

Cascais (Fotografia de Marisa Cardoso)

– Era o sítio onde a terra acabava, como no primeiro verso de ‘Cascais’ de Garrett, ou onde a terra principiava, como na primeira frase de O Ano da Morte de Ricardo Reis?
– Eu sentia que o mar continuava, sabe? Porque há um afunilamento e depois o rio abre outra vez, não é? É uma espécie de continuação. A minha noção de rios eram os rios africanos: grandes, caudalosos… isto era outra coisa. E depois era setembro, ainda verão. Senti o mistério que Lisboa tinha.

– É a primeira chegada a Lisboa?
– Sim, sim. 12 para 13 anos. Tinha vivido em Moçambique, passado a infância no mato e os últimos dois, três anos em Lourenço Marques. O meu pai estava colocado em Lourenço Marques, numa situação de privilégio.

– Como é que vai acontecendo esse movimento do menino colonial para o autor pós-colonial?
– Começa com um choque extraordinário quando fui com os meus pais e os meus irmãos às terras ancestrais da minha família paterna, em Trás-os-Montes, Torre de Moncorvo. Eu, de repente, vi pobreza. Fez-me uma grande confusão. É claro que em África eu já tinha visto pobreza pior do que aquela. De repente, percebi que tinha vivido no engano. Que, afinal, o jardim do paraíso não era ali.

Primeira paragem: Hotel Albatroz. Refiro as amêndoas torradas e uso como desculpa o verso de Baudelaire em que se compara o poeta a um albatroz, elegante no céu, mas trôpego em terra, com as “asas demasiado longas para caminhar”, mas Helder traz-nos de volta para o chão da História: “O [hotel] Albatroz esteve em autogestão a seguir ao 25 de Abril [de 1974, revolução democrática]. Fui lá uma vez com a Maria de Lourdes Pintasilgo [única mulher primeira-ministra de Portugal, entre 1979-1980], que apoiava muitíssimo a autogestão e essa coisa toda. Hoje esquece-se muito o que ela fez. Este apagamento do que a senhora fez naquele tempo é que me indigna muito… E as pessoas sabem e continuam a ocultar”.

Não há amêndoas torradas, o chefe de sala confirma que deixaram de as fazer. Está chuva e vento na varanda, ficamos dentro. A evocação do Portugal pós-ditadura, na passagem dos anos 70 para os 80, evoca mais um episódio da singular biografia do nosso convidado: a transformação do jovem oposicionista que passou pela prisão e pelo exílio… em governante dos frenéticos tempos da revolução em curso. Primeiro como diretor-geral dos Espetáculos, em 1975, e depois como secretário de Estado da Cultura, em 79. “Foi uma época de total loucura, em que os acontecimentos eram diários.”

Passeando pela corte

De volta ao carro, continua a chover. Um cigarro antes, à porta do hotel. Outra vez à direita, em direção a Mafra, a 40 quilómetros de Lisboa, e ao que ficou do império colonial português. Chegamos. Nem de propósito, o carro fica estacionado em frente a uma árvore que o novo Presidente da República português, acabado de empossar, plantou na semana anterior.

– Revê-se na ideia de que Mafra, palácio último da monarquia antes da fuga da corte para o Brasil (em 1807, escapando ao exército de Napoleão) – ainda que imponente – é o pouco que ficou do império? Outras metrópoles produziram séculos de ouro e prosperidade, Lisboa deixou apenas um edifício disfuncional num sítio pouco provável.
– Sim, eu acho que a particularidade da nossa história é termos tido o único império cujas riquezas foram um fator de empobrecimento do país.

– Foi dinheiro que serviu para não trabalhar…
– Foi dinheiro que serviu para as oligarquias não investirem no país, e portanto não criarem emprego, não criarem trabalho. Fomos intermediários, vivemos sempre à custa de remessas.

– Serviu para as elites guardarem o poder…
– Exatamente. Tivemos elites profundamente cultas, mas nem sequer em monumentos deixámos muita coisa. No fundo queríamos todos ir para Paris, percebes? Nós nunca investimos. A Holanda investiu em massa e criou uma classe média. A Inglaterra, também. Nós, deste tamanho, com o ouro do Brasil e os diamantes de Angola, quando começa a guerra colonial, em 1961, éramos o país mais pobre da Europa Ocidental.

Estamos junto ao convento e palácio, glorioso despojo, enorme máquina de não fazer nada.

– Que relação é que tem com o Memorial do Convento (1982)? É o livro que “faz” Saramago, não é?
– É o livro que faz o Saramago… É um livro de grande aspiração, de invenção, possivelmente, e onde o Saramago faz a transição do neorrealismo tardio, do Levantado do Chão [1980], que é, para mim, o fim do neorrealismo, no sentido positivo, da sua coroação. E aqui [Memorial do Convento] dá-se o grande salto para a imaginação. É uma celebração da capacidade humana de tentar o impossível e transformar o impossível em realidade. É onde, de algum modo, a ideologia marxista, construtora, levantada do chão, encontra uma dimensão universal. Como tal, é um livro extremamente importante. Tem um elemento de ironia, por ser, no fundo, baseado num dos edifícios mais importantes, mas ao mesmo tempo mais estéreis da nossa cultura. É uma celebração do poder real, como aliás o Saramago mostra, mas, ao mesmo tempo e, mais uma vez, uma grande construção da utopia feminina. O Saramago é um escritor utópico, não em termos de utopia marxista, mas utopia humana. E acho que é neste livro que isso se torna claro, falando de um símbolo do império português que dá para um momento, mas não dá para se levantar do chão o país. E o que é interessante é o Saramago ter posto a ênfase em quem constrói [o palácio], quem pensa e quem inventa isto tudo, quem inventa máquinas de voar [Bartolomeu de Gusmão, pioneiro português da aviação].

Palácio Nacional de Mafra (Fotografia de Marisa Cardoso)

Avançamos os 232 metros que ligam os aposentos do rei, na ala norte, aos aposentos da rainha, na ala sul. É o maior corredor palaciano da Europa, palco do “passeio da corte” em voga no século XVIII. 232 metros são também a medida possível do real abismo conjugal dos donos da obra. A visita é conduzida pelo diretor do Palácio Nacional de Mafra, Mário Pereira, e pela diretora do Serviço Educativo, Fernanda Santos, mas quem parece mesmo em casa é Helder Macedo. Especialista em crepúsculos ultramarinos, reconhece à primeira o sangue azul que aparece retratado nas paredes. Como se de família próxima se tratasse. Com 80 anos, impecavelmente vestido – pode tirar-se o colonialismo de dentro de uma pessoa, mas é quase impossível sacar-lhe do pescoço o impecável lenço de seda –, percorre sem um protesto a enfermaria, as cozinhas, a sala do trono, a sala da música, a sala da bênção, a biblioteca, e ainda tem fôlego para subir ao mecanismo dos carrilhões e depois à cúpula. Ou não fossem os poetas irresistivelmente atraídos pela luz zenital.

“No fundo, todas as viagens acabam por ser uma tentativa de chegar a nós próprios, não é? A deslocação pode ser feita no espaço e no tempo. Geralmente é a combinação das duas coisas, mas se o Ulisses não chegasse a casa, a viagem teria sido uma sensaboria. A ideia da viagem iniciática é a da transformação qualitativa que há no processo de viver. Ora, vive-se no espaço, daí a noção que se tem sempre da vida como uma viagem. Só que um percurso precisa de um propósito. Uma das coisas trágicas da nossa consciência humana é que nós somos capazes de conceber a eternidade não sendo eternos. Temos, portanto, de impor algum propósito a este acidente que é a vida. Esse propósito pode ser o encontro dos outros, dos amigos, dos amores, dos países. Pode ser a viagem. Viajar é, de facto, fundamental para nos definirmos a nós próprios. Só nos definimos em relação ao outro. Sem os outros não existimos.” Ao regresso, não nos demoramos no quarto onde a monarquia portuguesa, na pessoa de D. Manuel II, dormiu pela última vez, de 4 para 5 de Outubro de 1910, na véspera imediata da implantação da República.

Outra vez à direita, depois de Mafra, agora de costas para o mar. O regresso a Lisboa, mais rápido, faz-se pela autoestrada. À passagem pelo Parque Florestal de Monsanto, à entrada da capital, põe-se de pé outro poeta: Herberto Helder (1930-2015). “Se eu aderisse a qualquer coisa sentia-me preso. Isso deve ser uma coisa, de facto, psicológica… o não querer ser amarrado. Eu não uso telemóvel porque quero poder não ser encontrado. É uma coisa um bocado… clandestina.”

– Por falar em clandestino, a fase política do Café Gelo foi a sério, não era só conversa, envolveu pegar em armas.
– Sim, eu e o Herberto… o Herberto Helder.

– Sim… Chegou a haver sarrafusca?
– Não, porque à última hora, já tínhamos a coisa toda preparada, quando veio a contra-ordem.

– É aquele célebre episódio, consigo e o Herberto num carro cheio de armas?
– Sim, em 58. Depois isso veio a dar no golpe Botelho Moniz, mais tarde [tentativa de golpe de estado em Abril de 1961].

– E qual era vossa missão?
– Íamos a Monsanto buscar armas. Eu, o Herberto…

A odisseia termina

O último dia começa às dez da manhã, no Campo das Cebolas, em frente à Casa dos Bicos. Foi construída em 1523, a mando de D. Brás de Albuquerque, filho “natural legitimado” do segundo governador da Índia. Hoje é a sede da Fundação José Saramago. “Estamos a cuidar daquilo que é público”, explica Pilar del Río à chegada, anfitriã, companheira do Nobel desde 1988 até à morte. Muito lá de casa, como sempre, Helder folheia a última edição da fundação: um ensaio sobre o erotismo em Saramago, cujo prefácio escreveu. Derrete-se com a anotação no diário do escritor, onde aparece registado o dia em que conheceu Pilar “de Los Rios”. Um pouco à frente, detém-se na primeira página do original de O Ano da Morte de Ricardo Reis. Levanta-se outra vez a frase “onde o mar acaba e a terra começa”.

Pilar del Río, Presidenta da Fundação José Saramago, acompanha o escritor Helder Macedo
Casa dos Bicos - Lisboa (Fotografia de Marisa Cardoso)

Última vez à direita, outra vez de frente para o mar. A viagem vai acabar onde começou, no coração da cidade. O vespeiro das letras onde a cultura lusitana deposita, há cinco séculos, o vasilhame. Pilar del Río não conduz e gosta de andar. O destino é um dos restaurantes preferidos de José Saramago, o Farta Brutos, na Travessa da Espera, ao Bairro Alto. É apanhar a Rua dos Bacalhoeiros, atravessar a Baixa e a Rua do Crucifixo e depois subir outra vez para o Chiado. Helder, sempre pronto, dispõe-se fácil a encarar nova colina. A viagem pelo fim do império acaba muito apropriadamente à mesa, porque “se Ulisses não chegasse a casa a viagem teria sido uma sensaboria”. Abençoado império que produziu esta doçaria, estes príncipes."

texto Luís Gouveia Monteiro fotos Marisa Cardoso

Crónica "O Dia Internacional da Mulher" (8/3/72) - "As opiniões que o DL teve"

Crónica publicada no "Diário de Lisboa", sobre a precária condição feminina e a crítica mordaz contra os direitos por cumprir e reconhecer. 44 anos depois muitos deles, os direitos, estão por cumprir.
Rui Santos  

Pintura de José Santa-Bárbara, retratando a mulher do médico e o cão das lágrimas, 
personagens da obra "Ensaio sobre a Cegueira"


"O Dia Internacional da Mulher"
(8 de março de 1972)

"Comemora-se hoje o Dia Internacional da Mulher. Os modos de assinalar a data hão de variar certamente de país para país, e não cremos que o nosso se inclua no número dos mais pródigos em manifestações: a verdade é que somos bastante avessos a exprimir publicamente o que pensamos, quando de facto pensamos alguma coisa. 
No caso presente, temos até fortes dúvidas sobre uma geral compreensão do que signifique a existência de um Dia Internacional da Mulher, quando se sabe que a ninguém passou pela cabeça instituir o Dia Internacional do Homem... Um espírito irónico insinuaria que, sendo o mundo dos homens, mal parecia que eles se festejassem a si mesmos, quer em termos de confraternização quer em termos de reivindicação. Há um Dia Internacional da Mulher como há um Dia Internacional da Criança, e esta aproximação já nos dirá melhor que é no plano da sujeição que estes dois seres (a criança e a mulher) se encontram. O Dia Internacional da Mulher serve, enfim, para relembrar o que foi a difícil caminhada dessa parte da humanidade a que os homens vão buscar, com mais ou menos hipocrisia, as redenções de que dizem carecer: a mãe, a irmã, a noiva, a esposa... 
Mas o Dia Internacional da Mulher há de servir também para mostrar quão longe ainda está a mulher de pacificamente aceitar como possível o mundo em que vive. Em todos os planos de promoção (social, intelectual, jurídico, económico e político), a mulher segue o homem. Com mais rigor diríamos que a mulher é mantida atrás do homem: muitas das suas conquistas são apenas aparência, e, quando se tornam reais, correm o risco de, com maior ou menor rapidez, perderem conteúdo e poder de aplicação prática. Na maior parte dos casos, o tempo e os interesses dos homens encarregam-se de neutralizar as conquistas alcançadas: a emancipação (no plano económico, através do trabalho remunerado, no plano intelectual, graças ao desenvolvimento da instrução, e no plano político, pela obtenção dos direitos de voto e de elegibilidade) encontra-se ainda hoje limitada por mil e uma pequenas teias. À volta da mulher continua a tecer-se o emaranhado casulo que a manteve isolada do mundo. Há exceções, bem sabemos, mas essas, ao que dizem, só existem para confirmar a regra... 
Vai longe o ano de 1971 em que o Olympe de Gouges escrevia a sua «Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã»; já vai igualmente longe a época de Mrs. Pankhurst, aquela inglesa que criou, no princípio do século, a União Feminina Social e Política, e que mereceu, com as suas companheiras de missão e de luta, o apodo displicente, senão desprezativo, de «sufragista». Mas é apenas de ontem, de 1952, para sermos mais exatos, a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, aprovada, por maioria, pela Assembleia Geral das Nações Unidas... Veja-se o que o tempo teve de andar e o que as mulheres tiveram de esperar: e, mesmo assim, a Convenção não foi aprovada por unanimidade. O pior mal, porém, não é que tenha havido países contrários a essa aprovação, mas sim que até mesmo nos países que deram voto favorável, ao nível de representação nacional, vida quotidiana continue a ser para as mulheres urna contínua luta para que se não percam os frutos escassos da vitória. 
O Dia Internacional da Mulher deveria ser, sobretudo, um lia de exame de consciência para os homens. O verdadeiro pecado original, se bem pesarmos o significado das palavras, talvez seja esta milenária discriminação que fez do mundo um lugar governado por metade das pessoas que nele vivem: os homens. Não todos, evidentemente..." 

in "As opiniões que o DL teve"
08/03/1972

(NR: Bold meu)